Diário de uma musicoterapeuta no Centro de Dia da Casa do Alecrim (COVID-19)
A 9 de Abril, a telemusicoterapia veio complementar os serviços de apoio à distância já a funcionar desde 16 de Março. Estes serviços foram iniciados pela minha colega Elena, terapeuta ocupacional e coordenadora do Centro de Dia da Casa do Alecrim.
Atendendo às
condições excecionais, este meu trabalho é alternativo a uma intervenção
presencial, de proximidade. Mas tenho
agora a oportunidade de trabalhar individualmente com algumas Pessoas que
frequentam o Centro de Dia! É tão bom! Permite tanta coisa diferente! Sem
prejuízo da força terapêutica que o grupo tem, estar individualmente permite um
fluir consoante a necessidade da pessoa que está do outro lado, naquele
concreto momento, mesmo que através duma telejanela.
A situação é
ideal para utilizar a música duma forma terapêutica? Não. A voz por vezes chega
mais devagar, o som da guitarra em certas ligações não se ouve. Mas, pese
embora estas “discrepâncias sonoro-técnicas”, o momento permite alegria,
descontração e permite atenuar momentos menos leves.
E com
satisfação verifico que há um reativar dos momentos passados nas sessões
musicoterapêuticas de grupo da Casa do Alecrim. Há um trabalho de fundo já
feito, com consistência. Por outro lado, certifico-me mais uma vez da
importância da musicoterapia se focar, nesta área de intervenção, na celebração
do momento, no centrar e trabalhar o aqui e agora e na procura de apontamentos
emocionalmente significativos para a Pessoa.
O trabalho
cognitivo, ora focado mais na atenção, ora mais na memória, onde saliento a
memória autobiográfica, outras vezes na linguagem falada, no seu treino, entre
outras áreas não menos importantes, está sempre presente e de forma não
diretiva.
Há
dificuldades sentidas nesta intervenção não presencial: falta a respiração
próxima do outro, a proximidade física, a linguagem corporal, faltam alguns
parâmetros ativos da voz que ajudam a descodificar melhor o estado interno da
pessoa permitindo uma utilização mais eficiente dos elementos musicais; falta a
imediatez da voz – sem delay. O
próprio contacto visual, tão importante na relação, é por vezes difícil de
estabelecer nas teleligações...
No entanto,
este trabalho permite que esteja mais próximo dos familiares que nestes tempos
de proteção social são heróis, são duplamente heróis, são infinitamente heróis,
confinados num espaço, dando o seu melhor. Esta intervenção pode, por vezes,
ser uma oportunidade de alívio para alguns familiares, alívio, por momentos, do
cuidar.
Neste
presente, é importante manter a ponte, manter a ponte na significância das
experiências. Agarrando um trabalho já feito, uma relação já construída, e mantê-la
até que esta conturbação toda passe e o ponto de encontro seja na Casa do
Alecrim!
Na 5ª feira,
realizei uma sessão com um Senhor com quem trabalho há anos na Casa do Alecrim. Engraçado, que mal ouviu a minha voz
- e ainda não me tinha visto, pois a cuidadora estava a ajeitar o ecrã - disse
com grande alegria: “É a Gabriela!” e a sessão foi realmente quase uma espécie
de celebração do reencontro. Este Senhor esteve sempre muito, muito feliz e lá
terminámos com as nossas peculiares desgarradas em que começamos a inventar
letras em melodias conhecidas. São letras que giram à volta do dia, do mês, do
estar ali, do nome de cada um, de como nos sentimos e tudo o mais que surja no
momento, num profundo trabalho de estimulação.
Na 6ª feira,
estive com uma Senhora que acompanho também há anos na Casa do Alecrim. Muito
engraçado! Cantámos 3 ou 4 canções mas apenas o início, porque foi o suficiente
para a esta Senhora ir buscar episódios da sua infância. Episódios felizes e
que lhe são atualmente muito importantes, pelos desafios cognitivos que estão a
aumentar em relação à informação recente. Esteve sempre entusiasmada. Conheci a
vizinha, alegre, que esteve no início a ajudar a estabelecer a ligação e que
apareceu discretamente na parte final para dar apoio a desligar o computador.
É um
trabalho que permite neste momento manter as pontes já construídas na Casa do
Alecrim e de alguma forma preparar o retorno à normalidade para um momento que
todos queremos que não demore muito...
Maria Gabriela Nicolau
Musicoterapeuta Certificada na Casa do Alecrim