O testemunho do cuidador natural

A Maria João é médica, casada e Mãe de um casal em que o mais velho tem 25 anos. Até lhe ser diagnosticado Alzheimer, privilegiava o seu desempenho profissional de modo a proporcionar a melhor resposta aos desafios colocados pelos doentes e o cuidar da família.

Para um leigo, as manifestações de ausência de memória que começaram a ocorrer não indiciavam o que uma consulta ao neurologista permitiu diagnosticar. Decorreu mais de um ano até ocorrer esta consulta; o contacto diário, que dificulta a perceção de uma alteração evolutiva, a idade ainda ?jovem?, numa perspetiva, mas onde se iniciaram já alterações fisiológicas inerentes à idade, o receio de incompreensão por aqueles que não convivendo diariamente se vão apercebendo das alterações, contribuíram para a demora na marcação da consulta adequada. Neurologia não será certamente a primeira opção.

O diagnóstico trouxe, para além de uma panóplia de exames que permitiram identificar a melhor ajuda a um bem-estar para a Maria João, a necessidade de adequar a sua atividade profissional; a responsabilidade do exercício da medicina é elevada. A ponderação entre o respeito pelos seus direitos e as suas responsabilidades não pode suscitar dúvidas. Fácil de dizer/escrever, mais difícil de praticar por quem está emocionalmente envolvido.

Recaem, então, ao cuidador tarefas para as quais convém estar preparado. Mas isso é num mundo ideal. A realidade fica um pouco aquém.

No caso da Maria João, onde a orientação espácio-temporal, a tomada de decisão e a compreensão estão comprometidas, a comunicação é significativamente afetada, com um histórico de entendimento conjugal evoluído ao longo dos anos. A disponibilidade para o estabelecimento de uma nova comunicação é imprescindível para garantir à Maria João o ambiente de compreensão, de que é compreendida, que necessita. É claro que o envolvimento emocional, a proximidade diária, dificultam aquela disponibilidade. O distanciamento emocional, que não significa ausência de emoção, permite uma maior aceitação.

A necessidade de romper/quebrar com estruturas mentais sedimentadas ao longo dos anos de convivência também é um desafio que se coloca aos que mais de perto privam com a Maria João, de modo a poder recorrer das ajudas existentes para proporcionar as soluções mais adequadas. Muitas vezes elas poderão estar à frente dos olhos, mas um hábito existente pode cegar.

Outra vertente a necessitar de atenção é a burocrático-administrativa. No caso da Maria João, a escrita é uma das áreas afetadas, diminuindo, ou mesmo impedindo, a sua identificação. A formalização de um representante legal foi, felizmente, de fácil obtenção. O percurso, sem orientação, que permitiu obter a reforma por incapacidade coloca desafios a quem partilhou com ela a sua evolução profissional e agora tem de, abruptamente, lhe colocar um fim. Entrar em contacto com quem profissionalmente conheceu a Maria João e lhe reconhece a competência, o desempenho e a dedicação dificulta a aceitação da sua atual situação.

Mais comumente associadas à doença de Alzheimer, mas que comportam um leque variado de demências, existem ajudas em instituições tão diversas como as Juntas de Freguesia, as comunidades religiosas e a Associação Alzheimer.

A maior dificuldade, no caso da Maria João, prende-se com a sua idade; ela pertence à minoria dos ?jovens? com diagnóstico de demência ou Alzheimer, reduzindo o sucesso na integração nos grupos existentes nessas instituições.

Felizmente, tem sido possível proporcionar à Maria João um acompanhamento dedicado durante todas as horas do dia, com o envolvimento da família.

Miguel Marques
2012