Olhava mas não via

Naquele Verão, mal cheguei a casa percebi que o azul dos olhos havia perdido a vivacidade tenaz com que sempre mirava o Mundo e que o sorriso já não tinha vestígios da malícia que tanto me divertia.

Também o abraço perdera aquele aperto desmesurado, que sempre propagara um sentimento de pertença, um sinal de amor incontido e sem vergonhas, que vinha do sangue, da terra, das pedras e de uma lavoura íntima com séculos de luta pela sobrevivência.

O meu pai já me tinha avisado: – ?O avô está muito acabado!?. O silêncio telefónico no final da frase deixara-me apreensivo. Não se tratava da habitual preocupação de um filho único e dedicado. Havia naquela frase um código de resignação à natureza, de mágoa pelo inevitável, uma ideia de fim sem inesperado nem remédio.

Nos primeiros dias notava apenas a troca de palavras, o embrulho em que se transformavam frases simples. Depois compreendi que havia já muito silêncio, muita abstinência de comunicação gerada pelo reconhecimento das próprias limitações. Senti-me golpeado pela Natureza e sem recursos para suster aquele avanço do inimigo insidioso contra a torre de menagem da minha infância e juventude.

Em meados dos anos noventa, não havia a Internet omnisciente e os médicos pouco ou nada sabiam que pudesse ativar a esperança na recuperação ou no retardamento da degenerescência cerebral.

A resposta foi doméstica, discreta e pessoal, na boa tradição transmontana. Em casa tudo se fez ? até obras de adaptação para melhor avizinhar os quartos de quem cuidava das dores de quem era sujeito a cuidado.

Durante quase dois anos o meu avô perdeu-se gradualmente nas brumas da morte, chamando tio Augusto ao filho e tia Madre à nora, até só restar um fio de queixume e olhos incrédulos.

No último Natal quisemos acreditar num lampejo de lucidez, quando o levámos ao colo até à lareira, mas as dores musculares foram tantas que nos arrependemos mil vezes da nossa esperança ou do nosso egoísmo que não queria prescindir da presença que sempre tivéramos.

Gosto de me convencer de que reconheceu o sabor dos beijos até ao fim e que ainda alcançou gravar a imagem da minha sobrinha Mariana recém-nascida, a única das bisnetas que pode gabar-se de o ter tocado.

Deste processo ficou uma memória pesada ? o meu pai gradualmente envelhecido e a minha mãe, que pagou a fatura principal, muito doente. Os que estavam longe preservou-os fisicamente a distância, mas levou tempo a resolver a perplexidade.

Quando uma década mais tarde o processo se repetiu com a minha avó, já não foi possível manter a mesma estrutura de apoio, foi preciso pedir ajuda profissional. E já havia mais informação, sabíamos por experiência e por consulta de especialistas que não há culpa nem expiação na doença de Alzheimer. Apenas a Natureza reclama seus direitos, sem que por enquanto consigamos opor-lhe a inteligência transformada em remédio.

Paulo Fidalgo
2013