Vivemos numa sociedade em que se tem verificado um aumento exponencial das doenças crónicas, em que surgem todos os dias avanços tecnológicos que permitem prolongar a vida, em que coexistem várias conceções de vida e de morte e em que a postura da Medicina é menos paternalista e as decisões clínicas são progressivamente partilhadas com os doentes e as suas famílias.

É neste contexto que surgem as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) em matéria de cuidados de saúde, como forma de reconhecimento do direito à autodeterminação prospetiva dos cidadãos, permitindo que a nossa vontade seja respeitada em futuras situações de incapacidade. As escolhas que cada um de nós faz neste âmbito são individuais, estão relacionadas com a nossa forma de ser e de estar no mundo e assentam em distintas crenças, valores e princípios de natureza cultural, ideológica, ética e/ou religiosa.

É um direito que os cidadãos que residem em Portugal conquistaram há onze anos, através da entrada em vigor da Lei nº 25/2012, e que podem exercer desde que cumpram cumulativamente os seguintes requisitos: a) sejam maiores de idade; b) não estejam em situação de acompanhamento, caso a sentença que a haja decretado vede o exercício do direito pessoal de testar; c) se encontrem capazes de dar o seu consentimento consciente, livre e esclarecido (art. 4º).

Em Portugal, as DAV são formalizadas através de documento escrito, designado de Testamento Vital, livremente revogável, válido durante 5 anos e assinado presencialmente perante funcionário dos balcões do Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV) ou Notário. Uma DAV deve especificar a situação clínica em que se aplica e os cuidados a receber ou não receber, podendo contemplar este tipo de conteúdos: “no caso de me ter sido diagnosticada doença incurável em fase terminal, não quero ser submetido a reanimação cardiorrespiratória; não quero ser submetido a medidas de alimentação ou hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural da morte e não autorizo a administração de sangue ou derivados”.

No nosso país, também é possível, no mesmo documento, cumulativa ou alternativamente, nomearmos um procurador de cuidados de saúde, atribuindo-lhe poderes representativos para decidir sobre os cuidados de saúde que vamos receber ou não receber, quando nos encontrarmos incapazes de expressar a nossa vontade pessoal e autonomamente (art. 11º da Lei nº 25/2012). No caso de escolhermos uma pessoa (ou várias) para nos representar, importará ter uma conversa prévia com ela e assegurarmo-nos que a mesma deseja ser nossa procuradora para este efeito e que partilha as nossas crenças, valores e princípios, ou pelo menos, que se compromete a fazê-los respeitar. É também importante lembrar que infelizmente, nem todos nós podemos contar com alguém próximo que queira assumir este importante papel nas nossas vidas.

O testamento vital pode ser elaborado através do preenchimento de um formulário desenhado para o efeito[1] ou, de modo personalizado, num Cartório Notarial. O seu registo no RENTEV é facultativo, ainda que muito recomendável, porque é deste modo que se torna acessível, não só a quem o outorgou, como ao respetivo procurador se existir e a todos os profissionais de saúde, designadamente médicos e enfermeiros, que integram a equipa de saúde responsável pela prestação de cuidados de saúde à pessoa que, entretanto, ficou incapaz de expressar de forma livre e autónoma a sua vontade[2].

Podem elencar-se várias vantagens na elaboração de um testamento vital: a) diminuição da ansiedade e culpa dos familiares quando são chamados a tomar decisões difíceis; b) aumento do conhecimento dos médicos relativamente aos desejos do doente; c) redução do uso da “medicina defensiva”; d) diminuição das preocupações legais de todos os intervenientes, pois a pessoa incapaz fez ouvir a sua voz antecipadamente[3].

Contudo, também se identificam algumas potenciais desvantagens: a) a falta de atualidade do consentimento pode trazer prejuízos ao doente, sendo que a nossa Lei[4] os atenua, na medida em que determina que as DAV não devem ser respeitadas quando se verifique evidente desatualização da vontade do outorgante face ao progresso dos meios terapêuticos, entretanto verificado; b) a pessoa em situação de saúde pode ter uma opinião diferente quando está a enfrentar a dor e a morte; c) dificuldades de aplicação dada a imprecisão da terminologia; e) possibilidade de afetar a relação médico-paciente[5].

Desde que o RENTEV foi criado em julho de 2014[6], cerca de 53 mil portugueses registaram o seu testamento vital. Em 2022, foram 13 mil, número que duplicou face a 2021[7]. Em junho deste ano, o número de testamentos vitais ativos rondava os 37 mil, dos quais perto de 13 mil foram registados por homens e mais de 24 mil por mulheres[8] .

Estes números impressionam pela negativa, por serem tão escassos, tendo em conta o decurso de nove anos desde a criação do RENTEV. Revelam, na minha perspetiva, o desconhecimento da maior parte da sociedade em relação a esta ferramenta jurídica, apesar da realização de algumas campanhas de divulgação ao longo dos anos. Parecem também revelar o facto de não termos o hábito de planearmos o nosso futuro e de perspetivar com antecedência uma situação de fim de vida.

Apesar do testamento vital remeter para a nossa finitude e de nos implicar a todos pelo simples facto de existirmos, este tema é pouco discutido entre amigos e família, nos media e, em geral, na sociedade portuguesa. Contudo, como bem sublinha a jurista Laura Ferreira dos Santos importa “tornar os cidadãos mais reflexivos em relação às questões do morrer e da morte, tornando-os assim também mais conscientes dos direitos e das escolhas que podem ter em fim de vida, é uma forma de aumentar o seu empowerment ou capacitação[9].

Especificamente na Demência, as DAV constituem um tema de especial relevância e, ao mesmo tempo, levantam desafios particulares, tendo em conta o facto de os diagnósticos continuarem a ser demasiadas vezes tardios (ou até inexistentes); de se verificarem, com frequência, dificuldades associadas à sua comunicação pelos médicos[10]; e de faltar, na maioria dos casos, um planeamento de cuidados que envolva ativamente a pessoa, respeitando as suas vontades e preferências, ao longo do curso da doença [11].

Infelizmente, todas as circunstâncias adversas acima descritas são promotoras da violação de direitos fundamentais, tais como, o direito à liberdade e à autodeterminação. Também colocam em causa o direito à saúde e direitos conexos, tais como, o direito a conhecermos o nosso diagnóstico e as opções de tratamento disponíveis, acedermos à informação sobre a nossa saúde e prestarmos (ou não) o nosso consentimento informado e prévio, no que respeita à realização de intervenções clínicas e/ou prestação de cuidados.

No que respeita ao diagnóstico, o facto de ser atempado permite que seja a pessoa a planear e a conduzir os assuntos da sua vida, em termos pessoais, patrimoniais e no que respeita à gestão da sua saúde, em articulação com os profissionais envolvidos e, se possível, com os familiares mais próximos. Sucede que para tomarmos estas decisões, numa fase em que ainda mantemos suficientes recursos cognitivos para o efeito, é necessário que o diagnóstico seja célere e nos seja devidamente comunicado, numa linguagem acessível e compassiva, de acordo com as nossas capacidades de entendimento e grau de consciência sobre a doença[12]. Se não o conhecermos, e dado que o mesmo acarreta uma perda gradual e progressiva de capacidades, vamos ficar impossibilitados de exercer direitos e tomar decisões importantes relativas ao nosso futuro.

Relativamente ao planeamento de cuidados, lembro aqui a recomendação da Alzheimer Europe, subscrita pela Alzheimer Portugal que estipula que a pessoa em situação de incapacidade deve ser informada sobre a possibilidade de escrever diretivas antecipadas, antes que a sua incapacidade progrida de tal forma que a impeça de o fazer[13]. A nível nacional, sublinho a referência expressa ao “estabelecimento de decisões para o futuro” na Norma Clínica da Direção Geral de Saúde sobre a Abordagem Diagnóstica e Terapêutica do Doente com Declínio Cognitivo ou Demência.[14]

É imprescindível que os médicos e os outros profissionais de saúde cumpram, na medida das suas atribuições, o dever de contribuir para aumentarem a literacia dos cidadãos, facilitando o acesso à informação e esclarecendo dúvidas, no âmbito de uma relação de confiança, colaborativa e dialogante, de modo que as pessoas possam atempadamente fazer escolhas que as dignificarão num futuro em que já não terão oportunidade de tomar decisões por si. Como já foi referido, o cumprimento deste dever torna-se mais urgente em relação às pessoas que vivem com Demência e o tema das DAV deve ser especificamente previsto e abordado, no âmbito do planeamento dos seus cuidados.

Em síntese, fazer um testamento vital corresponde ao exercício de um direito e a uma escolha individual. Compete a cada um de nós refletir e tomar uma decisão livre e informada. Não somos obrigados a fazê-lo. O que não pode acontecer é não o fazermos por falta de conhecimento, em especial, quando temos um diagnóstico de Demência e, por isso, potencialmente menos tempo para expressar a nossa vontade e contribuir ativamente para o planeamento dos nossos cuidados de saúde, em sintonia com os princípios e valores que defendemos, enquanto cidadãos de um Estado de Direito e membros efetivos de uma sociedade pluralista.

Termino, recorrendo novamente às palavras de Laura Ferreira dos Santos[15], subscrevendo o seu significado e alcance: “Perante graves situações de saúde, respeitar a noção de dignidade que cada um tem, aceitar que, perante doença grave ou a grave diminuição de qualidade de vida, tanto é legítima a esperança fundada da pessoa doente, como a sua desistência igualmente fundada.”

Catarina Alvarez – Responsável pelas Relações Institucionais da Alzheimer Portugal

Lisboa, 27 de novembro de 2023

 

[1] https://www.spms.min-saude.pt/wp-content/uploads/2016/05/Rentev_form_v0.5.pdf

[2] https://www.sns24.gov.pt/guia/testamento-vital/

[3] Laura Ferreira dos Santos (2011). “O Testamento Vital. O que é? Como elaborá-lo?” Ed. Sextante Editora

[4] Art. 6º nº 2 alínea b) da Lei nº 25/2012

[5] André Dias Pereira (2014). Revista JULGAR. Coimbra Editora

[6] Portaria n.º 96/2014

[7] https://observador.pt/2023/01/10/mais-de-13-mil-portugueses-registaram-testamento-vital-em-2022/?cache_bust=1689607014300

[8] https://www.spms.min-saude.pt/2023/07/rentev-assinala-9-anos-a-registar-testamentos-vitais/

[9] Laura Ferreira dos Santos (2011). “O Testamento Vital. O que é? Como elaborá-lo?” Ed. Sextante Editora

[10] Alzheimer Disease International (2021). “Journey through the diagnosis of dementia”

[11] Despacho nº 5988/2018 – Estratégia da Saúde na Área das Demências

[12] Low L-F, McGrath M, Swaffer K, Brodaty H. Communicating a diagnosis of dementia: A systematic mixed studies review of attitudes and practices of health practitioners. Dementia. 2019;18(7-8):2856-2905. doi:10.1177/1471301218761911

[13] Alzheimer Europe (2017) “Recommendations on how to improve the legal rights and protection of adults with incapacity due to dementia”.

[14] Norma DGS nº 53/2011 atualizada em 21 de abril de 2023

[15] Laura Ferreira dos Santos (2011). “O Testamento Vital. O que é? Como elaborá-lo?” Ed. Sextante Editora