Quid Juris?

Apesar dos diagnósticos tardios continuarem a ser a realidade mais frequente e de as demências continuarem sub diagnosticadas, um estudo recente revela uma crescente vontade da população em procurar um médico em caso de sentir confusão ou perda de memória. 1

De realçar também o crescente interesse da população pelos testes preditivos, ou seja, se existir um teste que permita prever a possibilidade, antes do aparecimento de quaisquer sintomas, de se vir a desenvolver Doença de Alzheimer, o mesmo estudo revela que, cerca de 2/3 dos inquiridos quereriam fazer esse teste.

 
A tendência é para os profissionais de saúde serem cada vez mais confrontados com pessoas que se queixam de problemas de memória ou que temem que possam vir a sofrer de Doença de Alzheimer porque têm um familiar com a Doença.

Certamente que o que mais preocupa as pessoas é poder prevenir, retardar a progressão ou minorar os sintomas. Conhecer atempadamente significa poder beneficiar de tratamentos mais adequados, entender o que nos espera no futuro, conversar sobre o diagnóstico e sobre os sentimentos que nos invadem, com a família e com os amigos, procurar informação sobre a doença e sobre os recursos disponíveis, e obter apoio, nomeadamente psicológico.

Mas igualmente importante será também poder escolher alguém da nossa confiança que nos possa apoiar em questões financeiras, pessoais ou de saúde e que, no futuro, nos possa representar, decidindo legitimamente em nosso nome e no nosso interesse.

Importante será ainda tomar uma série de decisões, de diversa natureza, sobre nós próprios e sobre a forma como queremos que a nossa vida seja conduzida quando já não estivermos em condições de tomar as nossas próprias decisões.

Planeamento Precoce e Processo de Interdição

Embora domine a ideia errada de que a nossa família tem poder para decidir por nós em situação de incapacidade, importa ter presente que tal não acontece. Em situação de incapacidade, enquanto esta não for declarada através de uma sentença judicial, a verdade é que ninguém pode tomar decisões em nosso nome. Nem o nosso cônjuge, nem os nossos filhos, isoladamente ou em conjunto, podem dispor do nosso património, decidir sobre a nossa saúde ou sobre os cuidados de que precisarmos. Mesmo que o estejam a fazer com a melhor das intenções ou no nosso melhor interesse, sem o nosso consentimento, em princípio, qualquer decisão tomada em nosso nome não é legitima.

Verificando-se a situação de incapacidade de alguém, há que desencadear um processo de interdição. É uma acção que corre no Tribunal da área de residência da pessoa a interditar. A situação de incapacidade é verificada pelo Juiz que se apoia no parecer de um perito médico, numa série de perguntas feitas à pessoa interditanda e noutros meios de prova que considere necessários.

Têm legitimidade para intentar essa acção, o Ministério Público e qualquer familiar sucessível (o cônjuge, os filhos, os netos).

Nessa acção é nomeado um tutor, ou seja, alguém incumbido de assegurar os cuidados e de administrar os bens da pessoa interdita, zelando sempre pelos seus interesses e representando-a quando necessário.

Muito embora qualquer pessoa maior e idónea possa ser nomeado tutor, o Código Civil prevê um critério supletivo com prioridades (primeiro o cônjuge, na sua falta ou impossibilidade o filho mais velho…)

O regime das incapacidades vigente em Portugal ainda não prevê a figura da auto-tutela, ou seja, a possibilidade de ser o próprio a escolher, enquanto o conseguir, pessoa da sua confiança para o representar como tutor.

De qualquer forma, desde já aconselhamos que as pessoas escrevam, preferencialmente, ou que exprimam por qualquer outra forma, a sua vontade sobre quem quer que as represente em situação de incapacidade. É possível que, quando a questão se colocar, essa vontade possa ser respeitada.

Testamento Vital e Decisões para o Futuro

Como estaremos recordados, em Setembro passado, foram discutidos na Assembleia da Republica quatro Projectos de Lei 2 sobre testamento vital. Muito embora esses Projectos não sejam tão ambiciosos como desejávamos, uma vez que se restringem às questões de saúde, deixando de fora as questões patrimoniais, aguardamos com expectativa o resultado da discussão na especialidade.

Muitos de nós nos preocupamos com a perspectiva de virmos a sobrecarregar os nossos familiares próximos, nomeadamente os filhos, com a dureza de tomar decisões difíceis sobre nós. Estamos a pensar na institucionalização, em intervenções clínicas ou em decisões sobre fim de vida.

As decisões para o futuro (das quais os testamentos vitais são uma das possíveis formas que podem assumir) podem respeitar a:

  • Consentimento e recusa de determinados tratamentos;
  • Participação em ensaios clínicos;
  • Opções relativamente a cuidados de saúde, incluindo cuidados paliativos;
  • Opções relativamente a institucionalização;
  • Questões financeiras relacionadas com a prestação de cuidados e outras;
  • Preferências no que diz respeito a necessidades espirituais ou religiosas e estilo de vida

É importante pensarmos sobre estas questões e outras que nos podem preocupar, que as partilhemos com a nossa família e que as escrevamos.

É importante consultar um advogado que nos possa aconselhar sobre as soluções jurídicas que temos ao dispor para preparar e prevenir o futuro quanto à gestão e disposição dos nossos bens (depósitos bancários, a pensão de reforma, os bens imóveis, por exemplo) e sobre questões pessoais, de cuidados de saúde ou outros.

A vida é nossa, não a vamos deixar nas mãos dos outros ou, pelo menos, vamos escolher alguém em quem confiamos, para a conduzir como nós queremos, quando já não formos, ou se alguma vez não formos, capazes de o fazer por nós próprios.

Maria do Rosário Zincke dos Reis
Advogada
Vogal do Conselho Fiscal da Alzheimer Portugal

1 Results of the survey reveal that over 85% of respondents in the five countries surveyed say that if they were exhibiting confusion and memory loss, they would want to see a doctor to determine if the cause of the symptoms was Alzheimer?s disease. Over 94% would want the same if a family member were exhibiting the symptoms.

2 Projecto de Lei nº 21/XII/1.ª (Regula o direito dos cidadãos a decidirem sobre a prestação futura de cuidados de saúde, em caso de incapacidade de exprimirem a sua vontade, e cria o Registo Nacional de testamento vital (RENtev); Projecto de Lei nº 62/XII/1.ª (Estabelece o regime das directivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional de Directivas Antecipadas de Vontade); Projecto de Lei nº 63/XII (Regula o Regime das Directivas Antecipadas de Vontade); Projecto de Lei nº 64/XII/1ª (Regula as Directivas Antecipadas de Vontade em matéria do Testamento Vital e nomeação de Procurador de Cuidados de Saúde e procede à criação do Registo Nacional do Testamento Vital).