
ALZHEIMER: DOENÇA DOS APAGÕES
A ciência médica não tem conhecimentos muito assertivos sobre a doença de Alzheimer.
Uma médica de Coimbra, da neurologia dos HUC, que seguiu a minha mãe durante mais de 12 anos, sobre essa enfermidade cerebral, dizia que era um misto de senilidade e dessa outra forma de se rotular o problema.
Apesar dos avanços que se têm ouvido para tratar esta redutora incapacidade, o certo é que falta caminhar muito, porque o nosso cérebro, o motor de tudo, é um complexo emaranhado de circuitos.
Lidei, por a minha mãe ter sido vítima desta doença, com a presença de extensos momentos de apagões em mais de 12 anos. A lucidez, para além de momentânea – segundos – acontecia poucas vezes ao dia.
Olhava para ela e doía-me vê-la longe e só, tolhia-me a alma, derretia-me o coração, destruía-me os sentimentos e fazia-me arrepiar toda a minha estrutura de filho e de homem.
Não reconhecia ninguém, apenas os que nunca saíram do seu círculo da vida: o meu pai e eu. Éramos, como dizia a médica, dois faróis de reconhecimento de uma navegação envolta em nevoeiros, em esquecimentos, em obscuridade de recordações e em vida sem vida…
Se a retirássemos do seu habitat diário havia de estranhar. Ficava tensa. Nervosa. Parecia que amedrontada.
Estava, e quase sempre, a olhar para dentro, como costumava pensar quando vivi alguns anos com ela e, depois, vinha estar, também com ela, todos os fins-de-semana, apesar de estar longe.
Lembrava-me do que tinha sido. Do labor da sua profissão que exerceu com determinação, rigor e muito garbo. Da mãe exigente e forçando regras, mas com o maior carinho, afecto e amor que sabia transmitir. Da dedicação à família e aos amigos, principalmente aos meus. Do reconhecimento da acção dos outros. Da estima e respeito pelos mais deserdados e desaconchegados da vida. Do sorriso franco e rasgado. Da simpatia para todos. Do repartir o que de melhor tinha, até do seu interior de paz. E do melhor que possuía: partilhava tudo com todos, porque fora ensinada dessa maneira, porque o próximo era, para ela, o seu Deus.
Sentia, muitas vezes, que me queria deixar segredos, mas já não o sabia fazer. Pressentia, aqui e ali, que me queria dizer uma palavra de admiração e, no fundo, uma outra que me disse vezes sem conto: “filho, amo-te e adoro-te”.
O que mais me custou, mas serviu de lição com uma enorme profundidade, foi ter de lhe começar a dar banho…
Foi tremendo. Derrotou-me. Quebrou-me todo. Estilhaçou-me. Mas aprendi que o pudor tem uma virtude imensa: ficamos a saber respeitar os outros, com mais fervor, especialmente o corpo de cada um, de uma forma mais absorvente e humana.
O Alzheimer de minha mãe, deixem-me que vos diga, foi uma prova de vida; foi um exemplo para mim; foi um pedaço da minha vida; foi um hino à sua libertação sobre o esforço, o sacrifício e o que penou para me dar caminho.
O Alzheimer de minha mãe foi uma dura etapa, mas robusteceu-me, heroicizou-me, herculelizou-me, atrelou-me mais compreensão e, apesar de tudo pelo que passei, acabou por ser uma despedida sofrida mas deu-me tempo para ter pensado em tudo que passei com ela.
Os doentes de Alzheimer precisam de amor, de palavras calmas, de gestos ternos e de muita compreensão.
Se não fiz mais, por ela, foi porque não consegui, algumas vezes; outras, porque não me deixaram…aproveitaram-se da doença para dividir, para maquiavelar, para me maltratar e para virarem familiares contra mim. A doença tem destas miudezas (des)humanas.
Bem-Hajas mãe por teres sido o que foste na saúde e na doença.
António Barreiros Martins
Fevereiro de 2018