Testemunho

Venho trazer-vos um testemunho que gostava muito que ajudasse todos os que, de uma forma ou de outra, estão a lidar com a doença de Alzheimer.

A doença de Alzheimer era a última coisa que eu e os meus irmãos achávamos que pudesse alguma vez afectar uma pessoa com o perfil da nossa Mãe.

Para além de linda e de aspecto forte e indestrutível, a nossa Mãe era, realmente, o baluarte da família. Do Pai aos filhos, todos víamos nela o nosso porto seguro, a nossa referência, a pessoa que nos passava valores de forma convicta, que nos orientava, aquela à volta de quem toda a família girava. Uma ?generala? para usar a expressão de alguns dos nossos amigos que sabiam bem o que era ter de passar a grande prova da sua aprovação.

Tirou o curso de enfermagem com desempenho brilhante e, em pouquíssimo tempo era enfermeira chefe. Desistiu para se dedicar, por inteiro, à família.

Interessada por tudo, a nossa Mãe dedicou a sua vida a ajudar os outros, e tinha sempre uma sede muito grande de saber – o que a fazia ler muito, frequentar cursos acerca dos mais variados temas, ir a concertos e exposições.

A nossa Mãe pintava, fazia peças de cerâmica cujas receitas revertiam a favor de instituições ou pessoas mais carenciadas que acompanhava, diariamente, com extraordinária dedicação. Tudo isto para vos explicar que a doença de Alzheimer, pensávamos nós, não podia mesmo acontecer com esta Mãe leoa com uma mente tão activa, e que achávamos ir cuidar de nós toda a vida.

De repente, por volta dos 60 anos, começaram a acontecer coisas estranhas: a nossa Mãe começa a telefonar-nos a toda a hora para nos fazer perguntas acerca de coisas que ela sempre soube fazer: para nos perguntar, por exemplo, o que devia ser o almoço. E perguntava uma, duas e três vezes, em ligações telefónicas que foram ficando cada vez mais repetitivas e consecutivas. (Uma vez ligou para o meu escritório, fora de horas, e deixou recado a quem lhe atendeu o telefone ? que, por acaso, era o meu Administrador -em relação à roupa que não podia deixar de ser estendida, acerca do jantar de família e muitas outras coisas que deixaram o senhor a achar deveras estranho o comportamento da mãe da Francisca, sem qualquer hipótese de pôr termo àquela conversa que ainda demorou bastante).

Nessa altura a nossa Mãe começa a escrever bilhetes e bilhetes em post-it?s, versos de envelopes, em tudo onde uma caneta pudesse escrever. Deixava-nos recados confusos, e manifestava preocupações e medos com a porta da rua que podia não estar bem fechada, com as compras que não podia esquecer-se de fazer, com tudo e com nada. Na realidade eram recados que escrevia para si mesma… Os bilhetes eram muitos mas a sua letra inconfundível, cheia de personalidade, muito grande e que ainda realçava a escrever quase sempre com canetas de feltro, parecia ir ficando mais fraca e com falhas.

Em casa as coisas começaram a ficar difíceis. O nosso Pai dizia que a Mãe não parecia a mesma, as coisas começam a perder aquela organização rígida habitual; começam-se a queimar tachos e refeições, a ocorrerem pequenos acidentes de alguma gravidade; o dinheiro e outros bens começam a aparecer nos sítios mais inacreditáveis; a carteira torna-se um objecto de culto onde se esconde tudo desde o relógio despertador a não sei quantas canetas sem tampa, alimentos, livros, meias, etc… As saídas sozinha começam a ficar desorientadas e têm de ser suspensas.

A nossa mãe começa também a perder o interesse pelo que se passa no mundo. Diz que as notícias são sempre iguais, que a deixam triste e lhe fazem mal. Nada lhe interessa… adormece em frente à televisão, não lê e deixa de se arranjar. Quando lhe damos roupa ou uma carteira nova elogia, mas não usa nada, preferindo tudo o que encontra de mais velhinho e usado, deixando de ter o gosto que tinha para combinar peças e cores. A nossa Mãe está cada vez mais triste e diferente. Emagreceu e nós conseguimos encontrar uma médica extraordinária, a Dra. Maria João Quintela, que a acompanhou e que acompanhou a Família, na fase pré-diagnóstico, com enorme profissionalismo e humanismo.

Depois foi necessário um neurologista – o Professor Castro Caldas que precisou de, sensivelmente, um ano e meio para diagnosticar a doença de Alzheimer, tão bem camuflada estava por uma depressão.

Nunca esquecerei aquelas consultas, e o esforço da nossa Mãe em disfarçar os seus esquecimentos perante as perguntas do médico para as quais, com grande desgosto, não conseguia encontrar resposta. Com dignidade e um porte que tentava altivo, desvalorizava as perguntas, ou respondia com outras perguntas ou comentários para mudar o rumo da consulta. No fim pedia, invariavelmente, desculpa ao professor pelo incómodo e por a filha ter ?… esta mania de a levar lá, com tantos doentes graves que o senhor professor teria certamente para tratar…? e depois, a sós comigo, dizia-me: «Que grande maldade teres-me trazido aqui e não me teres avisado do tipo de perguntas para eu me preparar!? Era de cortar a alma ver como estava triste por ter falhado, apesar de todos os meus esforços para dizer que tinha sido óptima!

Estava a chegar ao fim a doença de Alzheimer para a minha Mãe. Estava a chegar ao fim uma primeira fase, duríssima para ela, e em que nós (longe como estávamos de imaginar que aquele mal lhe pudesse acontecer) não reagimos como devíamos: não fomos tão pacientes como devíamos, não disfarçámos as suas dificuldades, não a ajudámos, porque não entendíamos nada do que estava a acontecer. Ficámos revoltados com ela e entre nós, porque nos sentíamos perdidos com tudo o que estava a acontecer, porque ela começava a fazer-nos falta… muita falta!

Algum tempo depois da sua morte tivemos mais uma prova de como esta fase deve ter sido difícil para ela, quando encontrámos um bilhetinho com letra frágil que dizia: «Acho que tenho a doença de Alzheimer?.

A partir daí a doença de Alzheimer torna-se, mais do que nunca, a doença da família que envolve o Pai, os Filhos e os Netos. Fomos, lentamente, tomando consciência que a nossa mãe estava a perder a noção do seu drama e estava mais indefesa, mas também mais tranquila.

Para o meu pai ? um ?pinga amor? num casamento feliz de 40 anos – tudo estava a ser ainda mais sofrido, porque foram para ele as primeiras ausências de reconhecimento, e até medos de que ele lhe fizesse mal, o que o magoava muito profundamente. No entanto Estava na hora de assumir a inversão de parentescos, de passar da revolta à aceitação, de suavizar ao máximo os sintomas da doença. Encontrámos conforto na constatação de que a Mãe já não estava a sofrer e estabelecemos prioridades para que tudo fosse menos difícil:

1ª Prioridade: Cuidar da nossa mãe assegurando-lhe todo o conforto e bem-estar físico que estivesse ao nosso alcance.
Não sabíamos nada e aprendemos. Resistimos mas chegou o dia, depois de partido o colo do fémur, em que o meu irmão Luís – que já ajudava tanto – passou também a dar o banho e a mudar a fralda da nossa Mãe. Tratávamos de a arranjar, pentear, perfumar e pôr um batom, e depois mostrávamos-lhe o espelho, para que visse o resultado.

Aprendemos a lidar com feridas e escaras inevitáveis em seis anos acamada, apesar de todo o cuidado da senhora que nos ajudava durante o dia de semana, e do apoio extraordinário da nossa tia Francisca, também ela enfermeira.

Aprendemos a sobreviver sem apoio médico ao domicílio, porque a doença de Alzheimer ainda não é compreendida por todos…

2ª Prioridade: Dar-lhe todo o afecto que estivesse ao nosso alcance, nunca desistindo, mesmo na fase de maior distância em que já nada parecia ligá-la a nós.

A nossa mãe teve uma sobredosagem de mimo – uma espécie de desforra por todos os beijos que não lhe tínhamos dado, por todas as frases queridas que não lhe tínhamos dito – e um constante contacto físico que nós, intuitivamente, acreditámos até ao fim ser válido e eficaz.

Os netos também foram envolvidos e passaram a demonstrar o seu afecto, dando presentes muito especiais à sua Avó ? os seus próprios brinquedos. Eram extraordinários os momentos de ternura da nossa Mãe em diálogo com o “chorão”. A Avó e a Mãe voltava a ser bebé… estava a sair do nosso mundo… então entrámos nós todos no dela, brincando também, e cantando as canções de infância que ela adorava. Em dias de festa até ganhávamos um sorriso ou palmas, o que nos enchia de alegria porque, nesta doença, cada dia é um dia!

3ª Prioridade (mas não menos importante): Manter a dignidade até ao fim. Desde uma cadeira senhorinha na qual o nosso Tio José colocou umas rodinhas escondidas para a deslocarmos sem ser numa cadeira de rodas normal, aos bonecos de arroz e chorões que arranjámos e que, além de a deixarem feliz, a impediam de estar sempre a mexer e a tentar tirar a sua própria roupa, a conversas sem nexo que, enquanto a nossa mãe ainda falava, mantínhamos com ela para a deixar feliz e não se sentir descabida, à companhia que lhe fizemos porque os amigos eram muitos mas só uns dois não desertaram entretanto, fomos entendendo que, com uma doença avassaladora como esta, a dignidade é, certamente, o valor a preservar.

A nossa mãe podia até ter-se esquecido de nós… mas nós, em momento algum deixámos de a sentir Pessoa ou esquecemos que ela era a nossa Mãe.

UM DRAMA QUE VIROU CAUSA

Nunca mais nenhum de nós voltou a ser o mesmo! O meu pai morreu antes da minha Mãe e eu, a minha irmã Margarida e o meu irmão Luís envelhecemos e ficámos mais tristes. No entanto, sentimos todo o conforto de termos dado o nosso melhor e de termos crescido tanto como pessoas com um drama como este. Hoje sentimos que temos de continuar a ajudar os outros com o nosso testemunho.

Por isso o drama transformou-se numa Causa. Uma Causa na qual está o meu Marido cuja Mãe – também forte e indestrutível! – foi vítima da doença de Alzheimer.E foi por isso que durante os últimos dois mandatos integrei a Direcção da Alzheimer Portugal ? um apoio fundamental para as pessoas com doença de Alzheimer e também para nós Cuidadores que ficamos totalmente perdidos pelo drama familiar e social que nos bate à porta sem nunca estarmos preparados.. Ser voluntária da Alzheimer Portugal foi e é uma forma de superar este luto, esta ausência?

Foi o passar de ? uma doença que nunca vou esquecer ? para o ?Não há memória de uma causa assim? ? a assinatura da nossa Associação.

Francisca Távora
2010