
A revolta do Intelecto
Tem 82 anos, a minha Mãe. Quando comecei a achar que era crescida, a minha grande dúvida era como se fazia para chegar a um nível intelectual como o dela: não iria ter tempo na vida toda para ter lido os livros todos, ter estudado as artes todas, ter pensado as filosofias todas. Como é que ela teria feito, como era que fazia?? Não chegava lá, e isso atormentava-me. Achava que ficaria sempre anos luz da sua sapiência, do seu enorme mundo.
Distinguia-se assim, pela visão, pela bagagem, pelo enorme conhecimento do mundo. Pela capacidade intelectual.
Depois, pela independência. Sempre autónoma, sempre a criar o seu caminho, sempre a não querer que nos metêssemos ou que a travássemos.
Um dia declarou que ía vender a casa e que ía para um Lar, porque isso era ideal, teria ?cama, mesa e roupa lavada e toda a independência do mundo?. Estranhámos, lutámos muito contra, enfurecemo-nos todas – cada uma à sua medida ? ela e nós, pela luta de aparentes teimosias. Não sabíamos, não podíamos saber. Mas ela já sabia.
A minha mãe é médica, o meu pai e o meu avô eram médicos. O conhecimento do corpo e eventualmente da mente estavam com ela. Acredito, hoje, que pressentiu, e depois estudou, e percebeu cedo, que caminhava para uma demência. Muito antes de nós. E por isso quis desfazer dependências, criar soluções, facilitar-nos, e a ela, a vida.
Mas não há nada de tangível nas demências: por onde evolui, como evolui, quando?nada previsível, apenas escrito numas nuvens que o vento altera constantemente. Escrito no possível apoio clínico e emocional.
Numa primeira fase, instalada num Lar, a minha Mãe era a grande dinamizadora de sessões de tertúlia, ou interpretações da Bíblia, ou passeatas a pé. Andava ainda com o seu carro que tanto adorava, e onde ao longo dos anos nos tínhamos habituado a ver papéis de todos os tamanhos e feitios a lembrar coisas óbvias, tipo ?abastecer!? ou ?ligar faróis?. Mas desde pequenina que assistia aos recados da minha Mãe, para nós e para si própria: lembrete para as compras, os presentes a tratar, os telefonemas a fazer?. E por isso não estranhámos. Era ela, mais velha, a apurar aquele (achávamos nós) ?tique?.
Está cada vez pior, riamos ao princípio. Depois começámos a perceber. Devagar, começámos a chamar as coisas pelos nomes, a insistir com as idas ao neurologista. Das primeiras vezes, ía sozinha lá para dentro, não nos deixava entrar.
O nosso médico de família, amigo de sempre, colo das nossas maleitas e dúvidas, avisou-me: «é ideal que ela tenha querido ir para um Lar por ela própria. Se tivessem de ser vocês a tomar a decisão ía ser muito mais difícil e doloroso. E se ela não quisesse, pior. Assim, por muito que vos custe, ela já lá está e vocês poderão dar-lhe todo o apoio de qualidade, sem se preocuparem com as questões técnicas ou com o peso da logística do dia-a-dia.? Quase certo. Na altura parecia terrível, mas ele estava quase certo.
Só nunca nos desligamos das questões técnicas, porque elas são difíceis e dolorosas para a nossa Mãe: uma mulher que dava aulas de saúde escolar, intervenção de higiene publica?.como pode agora admitir que lhe dêem banho? Desespera. Já não sabe porquê, mas desespera: resiste inabalável à ideia de que necessita de ajuda para a sua higiene. Ela? Ela, que sabe mais que bem como tomar conta de si e que ainda por cima toda a vida lutou para que esse conhecimento chegasse a todos?
E então enfurece-se. Depois conta-me que se enfureceu, mas já não sabe porquê. E entristece. As reacções estão lá, a razão é que já não.
O intelecto, de tanto crescer, de tanto acumular, de tanto ser a mais-valia, cansou-se. Fartou-se, rebelou-se. Agora quero lá saber, decidiu ele. Agora vou fazer só que me apetece mesmo agorinha fazer, nada mais. Esqueçam lá etiquetas, valores de anos acumulados, regras de boas maneiras ou até respeito ao próximo: não quero saber. Agora, vou estar por minha conta, vou fazer o que muito bem me apetecer, mereço férias de uma vida sem desligar.
A minha Mãe orgulha-se ainda hoje, num arrulhar sem fim, da sua mãe. Por ser tão forte, tão positiva, tão cheia de soluções para tudo, aparentemente do lado feliz da vida mesmo quando tudo estava negro.
Gosto de pensar que saio a ela, e que juntas, a ideia dela e de mim, capitalizamos as gargalhadas desta Mãe, que tantas vezes agora tratamos como filha. Rimos que nem umas malucas, cantamos e dançamos na rua, andamos de braço dado e imaginamos personalidades nas pessoas que passam, por algum pormenor que nos chama a atenção. Carpe Diem. Vivemos cada momento. Oiço-lhe verdades que nunca antes ouvi. Do que gosta e do que não gosta. Está numa roda livre de liberdade que é assustadora, mais para nós do que para ela.
Temos de deitar abaixo barreiras da análise: não dá para rotular atitudes ou declarações. Tudo é fruto do momento. Até porque a sua comida preferida pode ser ?uma chatice? 5 minutos depois, ou um programa desejado pode ser uma ?seca? quando lá se chega? e o palavreado mudou, o cuidado em dize-lo também? Mas acima de tudo, temo-la: ao seu riso, às suas delicias (quando alguma coisa ou pessoa a delicia, é o melhor ronrom do mundo, acreditem), às suas mil vezes boas reacções a uma boa noticia que agora mil vezes podemos repetir? Temo-la connosco. Custa o que nos desaparece entre as mãos como se não fosse a coisa mais importante que ela tinha, e por isso obriga-nos ao exercício do mais importante ser só tê-la: viva, forte, exuberante. Perdida, a pedir ajuda sem ser capaz porque nunca o fez, a pedir descrição porque não suporta o que sabe que está a fazer errado mas não consegue evitar, nem corrigir? é uma bebedeira permanente, incontrolável, mas nossa. Connosco. E com um riso delicioso. Por isso me agarro aos dias, aos momentos, e lhes dou todo o valor do mundo. Eternizo-os, e conto-os, e rio-me de mim e dela, e no dia seguinte começo tudo outra vez. Porque sem ela provavelmente eu não sorriria às primeiras amendoeiras em flor, nem falaria às rolas. E isso, acreditem, vale um intelecto inteiro!
Margarida Pinto Correia
2012